D2 SEXTA-FEIRA, 17 DE JANEIRO DE 2003
Praia de Micondó - Fotografia de Cláudia Fernandes

Eu sei que não tenho escrito muitas vezes (o que até é agradável para alguns) mas algumas coisas de interessante até têm acontecido desde lado das Crónicas. Para compensar o facto de que nunca acabei de escrever as Crónicas da Califórnia, talvez possa escrever algumas crónicas pós-Califórnia com algumas das minhas aventuras e desventuras.

Hoje decidi escrever-vos acerca da minha última aventura com a Cláudia, lá para os lados da linha do equador, entre o Natal e a passagem de ano.

Ultimamente todo o dinheiro é pouco para a vontade que há em viajar e conhecer sítios e culturas novas. Espanha já é demasiado perto e conhecida e o resto da Europa ocidental não difere muito. Afinal de contas somos todos europeus. Quer queiramos ou não existe uma identidade continental, que só é preceptível quando saímos do velho continente e nos deparamos com atitudes e maneiras de estar na vida únicas e diferentes.

Por isso decidimos rumar a África. Não ao norte de África onde seria óbvio, pois é mesmo aqui ao lado, mas à África equatorial. Mas não pensem que saímos do óbvio, por causa disso. Fomos para São Tomé e Príncipe, a antiga colónia portuguesa mesmo em cima do equador e no meio do golfo da Guiné.

Não sei se leram a Rotas e Destinos deste mês, mas a jornalista consegue dar uma boa ideia do que pode ser uma viagem às ilhas. Eu vou tentar cingir-me às aventuras que tívemos por lá, embora seja difícil contar tudo em apenas uma Crónica.

A sensação que se tem ao chegar é que não o deviamos ter feito. Depois de seis horas de voo, de uma pista minúscula que depois de atravessada a pé nos leva ao aeroporto, depois de passar os normais controlos alfandegários (em versão áfrica) e de sermos enfiados numa carrinha até que não haja mais espaço e de sermos levados numa viagem alucinante pelo centro da capital, fica a sensação o-que-é-que-estou-aqui-a-fazer-?

Tudo é diferente! Tudo! Os cheiros, as cores, os hábitos, a temperatura, a comida, a bebida, as vistas... Tudo! E no início é chocante, porque nós humanos somos adversos à mudança e as mudanças, ali, no espaço de horas foram imensas.

Em São Tomé não há seguros. E quando quisémos alugar um carro, também não havia. Bem, não haviam nas normais agências de aluguer, porque na recepção do nosso hotel havia. Não é que fosse um aluguer normal, não! Era um aluguer a um particular que alugava o carro para ter mais uns trocos. E que trocos! O que pagámos pelo carro em cinco dias equivale ao ordenado de um polícia de dez meses.

Mas o jipe era porreiro. Era um Toyota com 256 mil quilómetros, mas com o óleo mudado sempre que era preciso. A embraiagem estava a precisar de ser mudada e a bateria ainda nos deixou mal um dia. Mas de resto papava os buracos da estrada (e acreditem que não eram poucos) como mais nenhum.

Um dos dias decidimos passar o dia na praia. Fomos para a praia do Governador, que fica no norte da ilha e que para lá chegar tem que se seguir uns caminhos fora de estrada e por fim chega-se à praia deserta. Tão deserta que por pouco tínhamos que voltar a pé. A bateria resolveu simplesmente não funcionar e o jipe não pegava. O que nos safou é que um casal de franceses (aliás, ela era Jugoslava) que davam aulas de Inglês no Gabão nos deram boleia. Acreditem! Franceses a dar aulas de Inglês no Gabão numa praia deserta em São Tomé, existem. E são simpáticos!

Mas deixemos o carro! Bem, foi quase isso que fizemos. Mas eu voltei mais tarde com o dono e o recepcionista para empurra-lo ladeira acima e pegá-lo. Depois disso nunca mais deu problemas.

São Tomé tem três ou quatro estradas. Uma para o aeroporto, uma para sul, uma para norte e outra para a montanha. Há quem considere a estrada sul e a do norte a mesma, a cidade de São Tomé é que fica a meio. A estrada para sul (vamos chamá-la assim) tem cerca de 50kms (talvez 60) e acaba em Porto Alegre, passando por São João dos Angulares e Ribeira Peixe, entre outras povoações. Até São João a estrada está num estado que não lembra uma estrada em obras em Portugal. Depois de São João e até Ribeira Peixe não há estrada. Não há é como quem diz, mas o pavimento é quase inixistente. A partir de Ribeira Peixe até Porto Alegre a estrada está em óptimo estado e até tem marcações na estrada, tornando-se eventulamente na melhor estrada da ilha. A menos de uma derrocada que tapou uma faixa e duas pontes que cairam, mas que já foram substituídas por umas passagens sobre os rios uns metros ao lado.

A explicação para que esteja em tão bom estado é porque não há tráfego quase nenhum nessa zona da estrada. Tráfego é algo que dentro de São Tomé pode ser uma dor de cabeça. As ruas têm todos os sentidos, mesmo aqueles que vocês acham que é impossível ter, alguém já se lembrou de provar o contrário. A praça de taxis (ou autocarros) é algo irreal e indiscritível, especialmente na vêspera de passagem de ano.

Mas deixemos isso para mais tarde. Estava a falar-vos da estrada sul da ilha. Quando a fizemos a primeira vez foi um choque. Tínhamos acabado de chegar e fomos levados pelo recepcionista do hotel até fora da cidade em voo razante até à cidade de Santana. Nunca pensei que sobrevivesse a uma viagem a 100-110 km/h numa estrada daquelas e com o trânsito que tem. E cheguei a ver alguns São Tomenses a desviarem-se no último momento da morte certa contra a grelha do jipe acabado de alugar. O que vale é que Santana até é perto e àquela velocidade ficou ainda mais perto.

É difícil descrever o modo como as pessoas vivem. Eu sabia que São Tomé é pobre, mas é difícil imaginar que seja tanto. As casas estão assentes em estacas e por baixo das casas povoam os porcos e cabras que se encarregam de acabar com o verde e de fazer as suas necessidades onde as crianças brincam. Aliás, os humanos fazem as necessidades onde lhes é mais conveniente e onde a vontade aperta. É muito normal que seja ali mesmo na praia, na rua ou numa esquina.

Mas são felizes! Muito! Se choca parar numa aldeia, porque a visão e o cheiro são logo agredidados pelo modo como se vive, depressa nos esquecemos porque somos rodeados de crianças que alegremente nos pedem rebuçados (Doci! Doci!) e canetas (Stilo!). Quando digo crianças refiro-me a dezenas delas, como poderão ver nas fotos.

Mas não são só as crianças que são felizes. O povo é feliz! A natureza foi generosa com eles e pode-se recolher do mato quase toda a comida, que é feita à base de fruta, ervas e o peixe que é pescado ali mesmo naquelas águas quentes de 28º. A população, salvo os que trabalham, vive do que recolhe e tem muito tempo para ser feliz, dançar e cantar.

Ao longo da estrada as praias desertas seguem-se umas atrás das outras. Umas mais acessíveis outras menos, mas todas povoadas de coqueiros. Umas com areia mais branca que outras, mas todas com água quente. É difícil não estar horas dentro de água e não ficar com a pele dos dedos enrugada. Também é difícil não ter a companhia de alguns miúdos que acham piada ao facto dos brancos gostarem de estar ao sol. Conhecemos muitos, o Amilcar, o Wanderlei, o Du, o Alexandre, o Chalana e tantos outros que com um sorriso na cara contagiavam qualquer um.

Eu sou sincero e até ao fim sentia-me constrangido quando parava o jipe numa aldeia e era rodeado por miúdos. Não sei mas acho que me sentia um priviligiado por ter coisas que eles não tinham, mas na verdade os previligiados eram eles. Depende do ponto de vista. No ponto de vista dos locais, nós somos priviligiados porque temos dinheiro e vivemos num país "rico". É tão subjectivo...

Para terem noção do privilégio que é ter mais algumas coisas materiais, era normal pedirem-nos 1 conto para comprar vinho para a passagem de ano. 1 conto são 1000 dobras que equivale a uma nona parte de um euro, sendo portanto 22,275 escudos.

Mas também há os espertos. Ou amigos, como passarei a explicar.

Com o calor normal e a humidade do ar tornava-se difícil não andar sempre molhado, quer porque se suava, quer porque se tomava banho no mar e não se conseguia secar. Pois numa dessas ocasiões em que decidi andar de tronco nú a conduzir e sendo domingo, ao passar pelo centro da segunda cidade - Neves - fui mandado parar por um polícia. Gerou-se uma confusão, porque apreendeu-me os documentos e eu neguei-me a prosseguir sem eles. Mas ele insistia para eu seguir e que fosse falar com ele ao posto da polícia de São Tomé. Lá me deu uma guia escrita à mão (e que infelizmente não a tenho) que dizia que os documentos tinham sido apreendidos porque circulava conduzindo em tronco nú.

Só visto! Na verdade, o polícia (não vou dizer o nome para não criar problemas) já estava à nossa espera no hotel quando chegámos a São Tomé. Segundo ele os locais começaram a protestar quando eu passei em tronco nú e ele não teve hipotese se não mandar-me parar quando eu voltei para trás. Mas ele não queria criar problemas e não me queria multar, mas não podia ser desauturizado em frente daquela gente toda que num domingo à tarde estava na rua de Neves.

Deu-me os documentos e eu dei-lhe 40 contos (40.000 dobras) para beber uns copos na passagem de ano. Não chegava a 5 euros! Mas era cerca de um quinto do ordenado mensal dele, que segundo ele eram "10 notas de 20 contos mais uma", ou seja, 220 contos, 220000 dobras, cerca de 25 euros. Até combinámos ir almoçar juntos, mas depois não foi possível e ele não apareceu. Apareceu na noite anterior à nossa vinda para pedir desculpa e despedir-se.

E há imensas histórias que se podem contar porque as diferenças culturais são imensas. Mas há coisas inesquecíveis como a passagem de ano, na Roça de São João, rodeado de tochas e velas (não tem electricidade) a comer calulu, cachupa e porco no espeto a ouvir os tambores e os cantares dos locais, a conversar com franceses, um sueco, uma noroeguesa, uma jugoslava, um casal de belgas, umas portuguesas e uma série de São Tomenses.

Vai ser muito difícil esquecer um fim de tarde na praia, a chover ao pôr-do-sol e a boiar dentro de uma água quente e calma.

Vai ser ainda mais difícil esquecer os sorrisos das crianças e das mulheres a lavar a roupa no rio.

Talvez volte em breve!



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